sábado, 7 de novembro de 2009

O mito da “democracia racial” volta na voz da mídia

Por Dennis de Oliveira

Os meios de comunicação de massa transformaram-se, nos últimos anos, no poder de fato. De estimuladores do debate na esfera pública, viraram a própria esfera pública, entretanto mediado por relações mercantis-privadas. O sociólogo Otávio Ianni chama a mídia de “príncipe eletrônico”, fazendo referência ao conceito de “príncipe”, de Maquiavel.

Para Maquiavel, o príncipe (arquétipo do fazer político) apresenta a competência de analisar as condições objetivas dadas (fortuna) para fazer valer a sua vontade (virtu). Com isto, consegue fazer da sua vontade particular em idéia hegemônica exercendo a autoridade pela sua capacidade de liderar e não pelo medo imposto pela coação física.

Ianni, porém, afirma que, diferentemente do príncipe maquiavélico (termo que absorveu um tom de maldade) a mídia constrói a fortuna (as condições objetivas) a medida que a referência de mundo é construída por uma ambiência de simulações, de imagens construídas pela própria mídia.

A tal globalização, por exemplo, ocorre fundamentalmente pela circulação mundial de símbolos nas redes midiáticas, muito mais que pelas possibilidades de circulação de pessoas. Assim, a mídia não só exerce sua hegemonia ao apresentar determinadas posições e visões de mundo como dominantes, mas também por construir um cenário de tal forma que as possibilidades de exercício da política se restringem a ações que não contestem a ordem estabelecida. Ianni conclui que a mídia, como príncipe eletrônico, transfigura silenciosamente sociedade em mercado, democracia em consumo e ideologia em mercadoria.

É nesta situação que neste mês de maio as matérias referentes aos 120 anos de abolição foram tratadas nos meios de comunicação de massa. Os dados que mostram as desigualdades entre brancos e negros foram colocados dentro de uma construção de um cenário de estrutura social não marcada pelo racismo.

Com isto, as desigualdades raciais são colocadas dentro da dimensão do preconceito, como anomalias assistemáticas, pontuais, pessoais. Diante disto, reivindicações que apontam para uma mudança no pacto social, como as ações afirmativas, foram solenemente condenadas – inclusive por expoentes da esquerda – sob ao argumento de que “racialiazariam” as relações sociais no país que consagra a igualdade.
O novo mito da democracia racial é muito mais perspicaz que o seu antecessor formulado conceitualmente por Gilberto Freyre.

Enquanto que para o sociólogo brasileiro a democracia racial era demonstrada pelas relações de assimilação da senzala pela Casa Grande (e não de segregação física), a neodemocracia racial do príncipe midiático se instaura tendo como referência o contrato social liberal como o único terreno onde é possível se pensar saídas para a superação do racismo.

A mídia é produto da tradição liberal e está em sua gênese pensar o mundo única e exclusivamente a partir desta ótica. Por isto, fiel a esta tradição, pensar o racismo para a mídia só é possível a partir de uma concepção de atomização do indivíduo. É por esta razão que o racismo estrutural se transfigura para o preconceito individual e que a saída é a capacitação pessoal para enfrentar os “preconceituosos”. Ao exaltar determinadas qualidades da população afrodescendente, o que a mídia faz não é avalizar a luta contra o racismo, mas demonstrar que é possível a superação do racismo nos marcos da sociedade liberal – mais que isto, que a sociedade liberal é a única forma de se pensar a superação do racismo. Por isto, ao lado da divulgação de dados que mostram as desigualdades entre brancos e negros, o que evidencia o caráter racista no Brasil, a mídia se posiciona contra as ações afirmativas e qualquer política específica de combate ao racismo.

A neodemocracia racial midiática reconhece o racismo mas despolitiza-o e retira a sua componente estrutural, uma vez que é intocável o contrato social estabelecido dentro dos marcos da sociedade liberal.
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Dennis de Oliveira é professor da Escola de Comunicações e Artes da USP, jornalista e doutor em Ciências da Comunicação pela ECA/USP, presidente do Celacc e membro do Núcleo de Estudos Interdisciplinares do Negro Brasileiro (Neinb/USP).
E-mail: dennisoliveira@uol.com.br

Fonte: http://www.revistaforum.com.br/sitefinal/NoticiasIntegra.asp?id_artigo=3022

Dica do amigo Gustavo Marcondes, valeu irmão.

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